sábado, julho 29

"Rimbaud é inteligente até não poder mais; mas acabará muito mal” - Perrete, o velho e rabugento professor de Arthur.

Contemplo a discórdia. A imprecisão dos movimentos. O reflexo distorcido. Dois homens em um só. Duas mentes, dois objetivos, dois inimigos. Cada louco com seus fantasmas de estimação. Os meus respondem pela minha trêmula sombra.
Não podemos coexistir. Isso é mais do que evidente. Mas também não posso atacá-lo, diretamente. Atracar-me a mim mesmo me rebaixaria ao mesmo nível dele. Preciso agir de uma forma mais conspícua. Apenas a inteligência poderá subjugar este insano. Percepção versus intimidações. Os ingressos já estão à venda. Quem vencerá o grande confronto final?
Eis as recomendações: não posso deixar-me desalentar. Se eu entrar em desespero, ele assume o controle. Preciso de calma. Paz. Preciso convocar todo o equilíbrio ao meu redor. Como encontrar paz a fim de meditar no que fazer para derrotar minha insana e trêmula sombra? A resposta, bastante simples, vem me acarear, um sorriso estampado no rosto: LEMBRE-SE DE RIMBAUD!!!


Um importante concurso. Rimbaud é escolhido para representar o colégio. Poetize, Rimbaud. Poetize. São estas as ordens. Eis a sua grande chance. Mas, contrário ao que se espera, as ordens não o movem. Tampouco a grande chance o faz. Ao invés de escrever, Rimbaud mantém-se estagnado, a cabeça fincada sobre o Nada, viajando no seu mundo particular. Após nada produzir em horas, seu professor lhe cobra uma atitude. O poeta encara-o e arremata:
- Estou com muita fome.
De barriga cheia, Rimbaud escreveria um poema de tamanha sublimidade e primor que arrebataria o primeiro lugar no concurso.

Eis a única forma de me acalmar e pensar no que fazer para derrotar o insano: satisfaça sua fome, Messina. E então poderás ser invencível.
Levanto-me, estufo o peito e clamo:
- Preparem o banquete. O imperador saciará sua fome.
Bastou falar a palavra mágica “banquete”, e o Raul aparece do nada, todo faceiro.


Lucas ouviu toda minha história, mergulhado num estranho silêncio. Depois desatou a rir como um imbecil. Às vezes, acho que o Lucas deriva algum prazer em me apoquentar. Ele tem um certo dom para isso. Mesmo assim, invejo o fulgor juvenil do garoto.
Estamos num restaurante self-service, perto da universidade. O almoço é por minha conta – lá se vai o sobejo do meu salário.
Após recuperar o fôlego, mas ainda rubro, Lucas fala:
- Meu velho, se os caras da faculdade souberem da tua história, te dão a conta na lata.
- Se souberem de minha história, me colocam numa camisa-de-força e me jogam num calabouço, para nunca mais ver a luz do dia.
- Hehe... Pode crer. E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.
Ele recomeça a rir, mas dessa vez não me irrito. E se não me irrito é devido à minha surpresa ante suas palavras. O que ele disse? Como ele...? Como...?
Lucas continua.
- Eu vou te dizer qual é o seu problema, Messina. O seu problema é esse medo que você tem de encarar o seu passado. Vai me dizer que estou errado? Você é um covardão, meu velho. Não tem coragem de assumir o que já fez na vida e, por isso, fica com essas distorções da realidade. Se liga, Messinão. No dia em que você tiver peito, mano, peito mesmo, para assumir a tranqueira que você já foi e as besteiras que já fez nessa sua porcaria de vida, você sai dessa. Pode apostar.
Mal presto atenção no que ele fala. Não consigo me concentrar, não depois do que ele disse. “E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.”
Como permaneço em gélido silêncio, Lucas pega uma caneta e o guardanapo de papel de sobre a mesa.
- Cara, você tá em outra dimensão. Não tá ouvindo uma palavra do que tô falando. Isso dá até medo, sabia? Vou te escrever um troço. Quando resolver voltar para o planeta Terra, vê se dá uma lida nisso e medita pra valer, combinado? Ele escreve e me passa o papel. Vou nessa, maluco. Toma jeito, ou vai acabar na tal camisa-de-força, mesmo.
Ele se vai. Deixa comigo o papel onde está escrito: “E um vagabundo esmola pela rua / Vestindo a mesma roupa que foi sua”.
Mas ignoro a citação de Negro Amor. Minha mente é âmbito acelerado. Minha mente é “inmente”. A silhueta da Desconfiança ocupa o lugar à minha frente – outrora ocupado por Lucas. Como...?
Ao meu redor há confusão, enleio, descrença – tudo vindo à tona depois da frase casual de Lucas. Até meu apetite de imperador esquivou-se do meu ser. Em meu universo particular, remanescem apenas duas frases.
Eu jamais falei sobre o rato do meu quarto com qualquer pessoa.Então, como é que Lucas sabe que tenho um rato, e que ele se chama Raul?

segunda-feira, julho 24

Há confusão. Tênue linha entre o caos e os meus sapatos. Um oceano de profundidade mínima, um afogamento irreversível. Com quantos atos insanos se faz um louco? A resposta está no olhar absurdo com que encaro o mundo ao meu redor.
Estou sendo perseguido. Alguém no meu encalço. Alguém em ameaça. Tento me esquivar, encontrar um refúgio, um lugar seguro. Mas, definitivamente, não há como fugir, Messina.
O perseguidor é você mesmo.

Vultos. Diversos vultos. Olham-me. Cercam-me. Sussurram frases desconexas em meus ouvidos. Na maioria das vezes, ouço apenas murmúrios. Queria dar-lhes atenção. Queria sorrir-lhes. Mentes geniais. Todos eles, poetas entre leituras e estudo. Mas um louco como eu não deveria sequer estar aqui, ocupando essa estimada posição – professor destes jovens que respiram. Ainda não estou salivando, mas alguém aí saberia me dizer até quando?
Meus alunos se curvam no altar do Entusiasmo. Estão crescendo. Os dias se esforçam, mas não conseguem acompanhá-los. São efetivos, manifestam-se através de efeitos reais. Alguns deles publicam crônicas e poemas em jornais, outros já estão escrevendo romances e peças de teatro; e há quem se arrisque em esboçar novelas. Um aluno chamou colegas de outros cursos e montaram uma banda. Segundo eles, uma banda que une Renato Russo a Fernando Pessoa, Humberto Gessinger a Paulo Leminski. Quase lhes disse que querer ser genial é uma coisa, blasfemar é outra, mas acabei ficando quieto. Afinal, sou apenas um observador interessado.
Mas sinto orgulho deles. Não estou em condições de sentir coisa alguma, devido minha alienação. Mas sei que eles querem ser ouvidos. E sei que serão. Tolos os que acham que estou exagerando.
São guerreiros, e não vão desistir tão fácil assim.

Depois daquele dia, nunca mais vi a dona Madalena. Fujo dela. Às vezes, acho que ela foge de mim. Será que a impressionei com minha atitude firme, confrontadora? Pouco importa. Poderia me regozijar com essas lembranças, mas não consigo. Sou um louco. Um maluco doidão, como diria o pleonástico Lucas.
Além disso, estou envergonhado das falsas acusações que levantei contra ela. Talvez eu devesse pedir desculpas. Ou talvez eu devesse ir para trás da cômoda roer um pouco o meu móvel. Acho que ali eu teria um pouco de tranqüilidade. Acho que o Raul é mil vezes mais esperto do que eu. Acho que o Humberto é o poeta mais genial dos últimos tempos.
Mas, ultimamente, tenho achado, com bastante freqüência, que eu deveria estar num hospício.

Em meu quarto, um louco treme. Toda a estrutura também. Não temo mais as pessoas ao meu redor. Temo apenas o outro que se esconde em mim. O outro mais ensandecido do que eu, e que parece disposto a tudo para assumir o controle da situação. Sou a flecha e, ao mesmo tempo, sou o alvo.
Raul não apareceu hoje. Talvez esteja assustado com meu comportamento. Melhor assim. Quanto mais longe de mim ele ficar, mais seguro estará. Quanto a mim, o que tenho de fazer para me manter longe de mim mesmo?
Olho sobre a cômoda. Livros e mais livros. Entre eles, um estilete. Ele reluz para mim. Nem tudo o que reluz é mortal – é isso o que diz o ditado? Odeio ditados. O melhor é se precaver. Pego o estilete e abro a última gaveta da cômoda. Desisto. Tem um buraco imenso ali – resultado direto das crises depressivas e protestos veementes do meu camarada. Abro a penúltima gaveta, então. Escondo o estilete debaixo de algumas cuecas furadas. Fecho a gaveta. Afasto-me e encaro a parede. Antigamente fazia isso por achar a parede tão parecida com minha vida. Hoje, não acho mais. Será?
Pra variar, questões invadem minha mente.
Será que ele, o outro Messina, sabe tudo o que sei? Digo, tudo? Será que posso enganá-lo, fazer algo que só minha personalidade menos maluca esteja a par? Sei que ele sabe o que sei, mas não estou certo se sabe realmente tudo. Isso tudo é loucura.
“Somos quem podemos ser”, diria o Gênio. Mas quem eu posso ser, amigo? Que porcaria eu posso ser? Realmente, desconheço a resposta. Talvez por isso não tenho coragem de me encarar num espelho. Não sou indivisível. Não sou autêntico. Não sou sequer a cópia de mim mesmo. Sou a dubiedade dum lastro vacilante. Sou o opróbrio de faces confusas, latentes. E nesse vai-e-vem, me desconcerto em peças pouco observáveis.
É por isso, amigo, que não sou quem posso ser. Se pudesses me ouvir, serias capaz de me entender?
Volto-me para a cômoda, casual.
Mas a eventualidade do momento perde a força quando vejo um objeto repousado, reluzente, sobre o móvel.
É o estilete recolocado cuidadosa e ameaçadoramente sobre a cômoda. Debaixo dele, mais um singelo bilhete:

“NÃO TENTE ME TAPEAR”

quinta-feira, julho 20

Três horas depois. Ou seriam três anos? Pouco importa. No causticante momento da morte, perco a noção do tempo.

Estou sentado em minha cama, olhos bem abertos, dois bilhetes em mãos. Raul, a princípio, ficou parado me observando; achei que era por preocupação, mas me enganei. Ele provavelmente esperava um pedaço de pão. Às vezes, dou-lhe um pedaço do miolo – do pão, obviamente. Em dia de pagamento, até presenteio meu camarada com um pedaço de queijo. Mas quando não dou nada, Raul fica indignado... como hoje. Em protesto, ele foi para trás da cômoda e começou a roê-la numa barulheira infernal. Se Raul fosse humano, ele provavelmente seria um ativista.
Em mãos, ainda, os bilhetes. Bela e familiar caligrafia a dela. Por que digo “familiar”? Não sei. Só sei que me parece familiar. Por que digo “dela”? Porque não consigo conceber outro responsável pelo crime de me ameaçar senão aquela que carrega em si todos os malefícios universais: a Medusa. Mas me questiono também: será que uma mulher com serpentes na cabeça teria uma escrita tão bem cuidada, uniforme e elegante, como aquela? Difícil responder – não seria tão difícil se eu me correspondesse com Esteno ou Euríale.
Como ela soube que estou tentando respirar e dar um pouco de ar àqueles jovens? Será que fui delatado por algum dos meus alunos? Ou será que ela pode ouvir meus pensamentos?
- Malditos pontos de interrogação – vocifero.
Raul, assustado, põe a cabecinha para fora para conferir meu estado. Ele não está acostumado com essas reações.
Enfio os bilhetes no bolso. Extravase, Messina. Mas extravase na hora e presença certas. Por que não extravasar diante dela? Não estou inteiro, afinal? Por que não aproveito o momento ímpar e enfrento essa mulher? A propósito, por que não paro com essa angustiante mania de fazer perguntas?
Levanto-me com destemor. Messina com destemor – até parece piada. Já disse que sou bom em fazer piadas?
Olho para Raul. Ele parece perceber que algo grandioso está para acontecer e, por isso, assiste tudo com vívido interesse.
- Se eu não voltar em vinte e quatro horas, pode roer toda a cômoda, amigo.
Ele não parece disposto a esperar o desaparecimento oficial do inquilino do quarto. De imediato, volta para trás do móvel e recomeça a roedura.
Quanto a mim, o homem das interrogações, saio do meu quarto, confiante diante do meu objetivo. Estou mudado. Pareço mudado, realmente. Vou até o quarto dela – novamente estou lá, diante daquela porta. Não ouço o ronco – a porta e a parede não vibram. Não ouço uivos. Ela está aí dentro? Só há uma maneira de saber. Levo a mão à porta. E bato com vigor. Eu não acredito que estou fazendo isso. Mas estou.
E não pretendo pagar o aluguel.
Lentamente, a porta se abre. Uma brisa impetuosa sai de dentro do quarto. Sinto um cheiro estranho, parecido com mofo. Mofo lembra sepulcro. Sepulcro lembra o lugar para onde ela pretende me mandar diante do meu arrostar.
Quando a figura gorgônea emerge do quarto, olho para baixo, súbita e mecanicamente.
- Senhor Messina? Espero que tenha um bom motivo para me incomodar.
Engulo em seco.
- Eu... eu... eu... – Paro na busca desesperada pelo ar, agora, rarefeito.
- Estou esperando. E quanto mais espero, mais me indisponho. – Nunca havia reparado que ela parece ser uma mulher culta.
O universo nesse instante sofre um cataclismo. Convulsão universal. Passos fora da estrada. Abalos. Nada em seu lugar. E a razão é que eu, o rei dos covardes, resolvo responder. Acreditem: eu RESPONDO.
- Se a senhora tem colocado bilhetes debaixo da minha porta, acho melhor parar.
Vejo seus pés. Ela dá um passo em minha direção, ameaçadora.
- Do que está falando, seu moleque?
- Se voltar a fazer isso, eu...
Não diga ainda, Messina. Ainda não. Conclua sua frase, mas conclua olhando nos olhos dela. É a única maneira dessa mulher te respeitar. Olhe nos olhos dela, Messina, e profira sua derradeira e maledicente ameaça.
Sem pensar nas conseqüências, começo a erguer a cabeça. Olho para as pernas dela, seu quadril, contemplo todo seu tronco, vejo seu pescoço, seu queixo, sua boca, seu nariz, e...
Alguém aparece do meu lado, agarra meu braço e me arrasta, de forma violenta.
É Lucas. Ele me puxa para fora do pensionato como se este estivesse em chamas.
- Tá maluco, mano? O que você pensa que tá fazendo?
- Estava enfrentando aquela criatura, até que a porcaria dum intempestivo surgiu do meu lado e atrapalhou tudo.
- Intempestivo? Eu? Acha que está preparado para enfrentar a Medusa?
- Eu não sei. O que sei é que preciso de respostas.
- Que tipo de respostas?
- Acho que essa mulher está me ameaçando.
Lucas agarra meu braço, novamente, e me arrasta, dessa vez para mais longe – quanto mais longe, mais seguro.
- Diz aí. O que te aflige, Messina?
Hesito – eu vivo hesitando. Quando não estou fazendo perguntas, estou hesitando. Não passo de um hesitante indagador.
Enfio a mão no bolso e pego os dois bilhetes.
- Encontrei isso em meu quarto. Colocaram por debaixo da porta. Quero saber quem está fazendo essa brincadeira comigo. Acho que a dona Madalena tem algo a ver com isso.
- Quando achou?
- O primeiro, terça passada. Esse outro, agora a pouco, quando voltamos do Piano Bar.
Lucas fica me olhando. Sério. Examina-me. Após alguns instantes, começa a rir. Ri muito. “Gargalha”, para ser mais exato.
- Posso saber a razão da graça?
- Você é o maluco mais doidão que eu conheço, Messina. – Ele mal consegue falar de tanto rir.
- Do que está falando?
- Ora, você sabe muito bem quem colocou esse bilhete debaixo da sua porta.
- Sei?
- Claro que sabe.
- Não, eu não sei.
- Claro que sabe, maluco. – Ele pára de rir. – Ora, mestre, você colocou.
Agora sou eu quem ri.
- Eu? Qual é, Lucas? É a ressaca de ontem?
- Eu bem que achei estranho. A gente chega do Piano Bar, eu vou para o meu quarto, você para o seu. De repente, me lembro de te falar algo sobre o movimento. Vou até o seu quarto. Então o que vejo? Meu amigo Messina, ajoelhado no chão, escrevendo alguma coisa num papel. Logo em seguida, meu amigo dobra o papelzinho e enfia debaixo de sua porta. E depois, simplesmente, entra no quarto, sem mais nem menos.
- Você enlouqueceu.
- Eu? Tem certeza?
O que está acontecendo? Ele só pode estar brincando comigo. Então, por que estou apavorado? Sua declaração é absurda, mas estou terrivelmente assustado. Parece existir alguma razão recôndita no encalço de suas palavras. Ele recomeça a rir. Ri sem parar.
Eu não escrevi esses bilhetes.. eu não escrevi... A caligrafia. A bela e familiar caligrafia. Por que “familiar”? Por quê? Porque a caligrafia no bilhete é mi... Não! Não! Por Deus, não!
Feche os olhos. Concentre-se, Messina. Concentre-se.
E recapitule.

Onde você estava?
Eu estava ali, parado diante da porta do quarto da dona Madalena. Eu me afastei. Fui para o meu quarto, abri minha porta. Só isso? Não, estou me esquecendo de algo. Concentre-se, imbecil. Eu não abri a porta, de imediato. O que eu fiz antes? Eu enfiei a mão no bolso e peguei... e peguei... um pedaço de papel e uma caneta. E escrevi algo... O que eu escrevi? O quê? Eu escrevi... eu escrevi:
“TUA REBELDIA SERÁ TUA SENTENÇA, AMIGO. TEU SONHO DE UM SENTIDO NA VIDA É PURA TOLICE. OU ME ESCUTA AGORA, OU, ENTÃO, DIGA ADEUS, MESSINA”
E, então, dobrei o papel e enfiei debaixo da porta. Entrei no quarto. Acendi a luz. E o Raul me olhou, assustado.
Por Deus, não! Não pode ser verdade.
Volto a abrir meus olhos. Lucas está vermelho de tanto rir.
- Tu é doidão, mano. Doidão no último.
Eis a minha retratação: dessa vez, dona Madalena é inocente.
E, por favor, um último ponto de interrogação.
Que porcaria está acontecendo comigo?

segunda-feira, julho 17

"Ociosa juventude
De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que a alma enamora"
– Arthur Rimbaud


"Não adianta reclamar do pouco tempo que nos resta
Nos resta aproveitar antes que seja tarde
Só temos uma escolha:
Um momento apenas
Ou a vida inteira pra se arrepender"
– Humberto Gessinger

Caminho. Logo vai amanhecer. Quero raios de sol ou ainda me encanto com céus nublados e cinzentos? Falta-me ousadia para responder.
Mais uma vez deixei uma madrugada se descarregar sobre a mesa de um bar. Conversas filosofais. Discussões acaloradas. "Invidas" querendo ser vidas. Estamos cansados desse ritmo, desse "desvidar". Vida, por que insistes em fugir de mim?
Caminho de volta ao pensionato, ao lado de Lucas que gesticula e se esgoela – ele poderia acordar a vizinhança. Mas, dessa vez, não sinto meus restos ficando para trás. É estranho e, ao mesmo tempo, magnífico. Sabe o que significa caminhar e não sentir as sobras de toscas frações ficando para trás? Respeitem-me: sou Messina. O Inteiro Messina.
A reunião de horas atrás foi boa enquanto apenas uma informal discussão. Não sei aonde tudo isso vai dar. Não sei coisa alguma. Mas senti satisfação em ver atmosferas cinzentas ganharem cor. Atmosferas coloridas. Jovens discutindo seus projetos com paixão. Não eram máquinas programadas para construírem Nadas. Não os vi como restos juvenis, vidas perdidas, breves brisas. Dessa vez, eram homens elucidativos, senhores de toda situação. Por isso, mantive-me aquém durante toda a noite. Lancei a idéia, nada mais. Um observador interessado. Um observador diante de múltiplas mentes grandiosas criando, mentalizando, concentrando-se no amanhã. Eles se sentiram vivos. Sentiram-se essência vívida de um universo de criatividade, paixão contida e incontida.
E eu – apenas um observador interessado.

Chegamos enfim ao pensionato. Todos ainda dormem. Se Lucas não calar a boca, em cinco segundos todos estarão acordados. Não gostaria de ver dona Madalena sendo acordada tão cedo. Seu mau humor matutino somado ao seu diário mau humor clássico deflagraria tamanho ímpeto de furor que seria capaz de gerar a Terceira Guerra Mundial.
Lucas vai para o seu quarto ainda com sua conversa animada sobre o "movimento cultural". Quanto a mim, preciso voltar ao meu quarto e, em três horas, à minha rotina indomada do inalterável professor de literatura. Ou será que estou me enganando? Será que dessa vez acenarei adeus para a senhora (ou senhorita?) Derrota? SERÁ???
Estou em frente ao quarto dela, dona Madalena. A impiedosa e cruel Medusa. Ela deve dormir. Ela dorme. Um sono profundo. Ronco. Ouço o som cavernoso vibrando porta e paredes. Levo a mão à maçaneta. Hesito. O que estou querendo fazer? Conhecer o templo sombrio da senhora destruição? Eu nunca vi esse quarto. Ela sempre mantém a porta fechada. Sempre. O que ela guarda ali? Suas vítimas estatuárias? Objetos medievais de tortura? Não sei e não quero saber. Temo ver tamanho horror ali, horror marcante e traumatizante. Ouço um uivo. Seus lobos. Suas feras. Afasto minha mão da maçaneta como se fosse possível pegar uma doença contagiosa. E quem há de negar que nisso tenho toda a razão?
Vou rapidamente para o meu quarto. Quando acendo a luz, deparo-me com um assustado Raul. Ele me olha como quem tem uma péssima notícia.
- O que houve, amigo? – pergunto.
Ele inclina a cabeça na direção dos meus pés. E então vejo um papel dobrado, no chão. É um bilhete. E nele está escrito:

"TUA REBELDIA SERÁ TUA SENTENÇA, AMIGO. TEUS SONHOS DE UM SENTIDO NA VIDA É PURA TOLICE. OU ME ESCUTA AGORA, OU, ENTÃO, DIGA ADEUS, MESSINA"

É nesse momento que me convenço de que minha vida corre perigo.

quarta-feira, julho 12

Piano Bar. Três mesas adjacentes. Doze pessoas. E alguns abalos sísmicos.
- Um movimento não pode ser planejado, gente. Ele tem de acontecer, naturalmente.
- Quem disse?
- É a lógica.
- Eu acho que ele pode ser induzido, sim.
- Eu também.
- Eu também.
- Nem. Doze pessoas não vão conseguir mudar a cultura.
- E quem falou em “mudar a cultura”. Vamos contribuir para ela.
- Dá na mesma.
- Quem disse?
- Isso é muita responsabilidade, moçada. Olha pra nós. Nós não somos um Bandeira ou um Andrade.
- Nada a ver...
- E daí? Somos Silva, Albuquerque, Mendes. E isso é o que importa.
- Vão rir da nossa cara. Nós não temos preparo. E nem bagagem.
- Ficou sabendo que o Syd Barrett morreu, mano? Mas que droga!
- Pô, Marcão, presta atenção na conversa. Isso é sério.
- Foi mal.
- Eu acho que precisamos convocar pessoas com nossos mesmos ideais.
- Isso mesmo. Propomos uma reformulação da literatura, da pintura, do cinema, enfim...
- De todas as artes.
- Isso. De todas.
- Até das novelas?
- Novela não é arte.
- Quem disse?
- Mas precisamos pôr tudo no papel.
- Deixa que eu escrevo.
- Nem... Eu escrevo.
- Todos escrevem. Cada um coloca suas idéias sobre o movimento. Depois fazemos um apanhado geral.
- Eu já tenho várias idéias.
- Eu também.
- Ainda não pensei em nada.
- Pô, coitado do Syd. Cego, doidão e recluso. Se não bastasse isso, agora, morto.
- E depois, o que vamos fazer? Como vamos convocar o povo?
- Espalhar cartazes na universidade...?
- Internet, moçada. Internet.
- Sem chance. Convidar quem a gente nem conhece? Precisamos olhar nos olhos das pessoas. Convocar desconhecidos estranhos anônimos está fora de cogitação.
- Isso não vai dar certo. Olha só pra nós. A gente vai virar piada.
- Outdoor.
- Outdoor? Tá louco? O negócio é propaganda boca-a-boca. Mais confiança. Maior controle.
- Falando em boca, porque vocês não calam a boca e deixam o Mestre falar. Afinal, a idéia veio dele. Diz aí, Messina, que que tu acha?
- “Novos horizontes / Se não for isso, o que será? / Quem constrói a ponte / Não conhece o lado de lá”
- Não tô falando que esse cara é porrada no último???
- Com o professor estaremos bem representados.
- E como!
- Quem aí falou em “bagagem”? O professor tem toda a bagagem de que precisamos.
- É isso aí.
- Acho que devemos tentar. Acho que vai dar certo.
- Eu também.
- Eu também.
- Não sei, não.
- Se não der certo, pelo menos, vamos crescer como pessoa. Vamos acabar amadurecendo, de um jeito ou de outro. Como disse o professor, de ponto de interrogação em ponto de interrogação, encontraremos todas as respostas de que precisamos.
- E de resposta em resposta, nós nos sentiremos cada dia mais completos.
- Pô, o Pink Floyd sem o Syd nunca mais foi o mesmo.
- Quem disse?

Sou o intimidado. O auto-retrato da Apreensão. Carrego, em meu bolso, um bilhete escrito à mão. Uma única frase. Múltiplos sentidos. Como ela soube?, me pergunto. Como a dona Madalena soube dos meus planos com meus alunos?
Mas, afinal de contas, quais são meus planos com eles? Eu não sei. Deveria ter algo planejado. Deveria ter algo, mesmo que não fosse planejado. Mas, nem isso tenho. O que vou dizer para aqueles jovens ansiosos de respostas, sedentos de objetivo? O que eles esperam que eu diga? Eles confiam em mim. Respeitam-me. Eu sei que sim. Mas o que tenho a oferecer àquelas mentes ansiosas de produzir LUZ?
Mão no bolso. Seguro o bilhete. Ele queima como fogo. Bilhete ignescente. Tremo. Nessas horas, sempre tremo. Foi ela. Dona Madalena. Ela me ameaça. Usa de alusões, não é objetiva. Talvez acredite que assim me torturará ainda mais. E está certa. Não sei exatamente do que ela é capaz, mas sei que é perfeitamente capaz. Um milhão de coisas maquiavélicas devem passar por aquela mente doentia. Não quero fazer parte de sua estatuaria, nem servir de refeição para seus lobos. Medusa e meu fim – parentes em primeiro grau.
Saio mais cedo do pensionato. O sol ainda não nasceu – eu, tampouco. O céu ainda é cinza – sorrio para ele diante de sua cor inóspita e familiar. Obrigado por homenagear minha vida!
“Deixe seus alunos em paz”.
Procuro afastar de minha mente, mesmo que por uma fração dos meus vagos instantes, o intimidativo gesto meduseu. Concentre-se no seu compromisso de logo mais, repito. Concentre-se...
Mas a concentração sucumbe quando alguém que se aproxima por trás.
- Deu de madrugar agora, meu velho?
É o Lucas. Deve ter me visto saindo do pensionato, e veio atrás.
Satisfazendo sua curiosidade, digo para o Lucas que estou envolvido com meus pensamentos. Explico, resumidamente, sobre a reunião de logo mais, mas não falo nada sobre o bilhete – “ou jamais encontrarás a saída deste hospício”. Ele fica excitadíssimo com a notícia do encontro no Piano Bar. Fica gesticulando, falando que agora sim a contracultura vai ser esfolada até o osso, que Maringá pariu a salvação da cultura mundial, que o mestre Messina isso, que o mestre Messina aquilo.
Fico olhando para o garoto enquanto ele gesticula. Ele é sorvido para um universo imperado pelo seu ânimo; ele movimenta as mãos como um maestro, ignorando tudo ao seu redor. Lucas tem poder de decisão. Lucas tem paixão. Um entusiasta. Arrebatado por suas crenças, ele é o Senhor da Exaltação. Sinto uma pontada de inveja. Queria ser como ele. Queria ser uma fração de Lucas. Apenas uma fração me bastaria. Gostaria de deixar de ser o covardão que sou e, pelo menos por um dia, ser Lucas, o entusiasta.
- Que bicho te mordeu, Messina?
- Ahn? Não... não é nada. Seguinte: apareça hoje no Piano Bar. Se quiser, avise a Cris. Acho que ela vai gostar de participar.
Participar do quê, meu Deus?, me pergunto, ainda sem saber o que o encontro de hoje a noite, reserva.
Lucas dá uma gargalhada.
- Sei não, Messina. Acho que não vai dar pra Cris ir, não.
- Por quê?
- Ela entrou pro Greenpeace. Disse que quer salvar a natureza e ai de quem cruzar o caminho dela. Grande Cris! A essa altura, já deve estar caindo no mundo.
Sorrio com a parte superior do canto direito da boca. A satisfação, nesse momento, invade minha vida.
E a razão é que, pelo menos a Cris conseguiu exterminar os seus pontos de interrogação.

terça-feira, julho 11

Arthur Rimbaud (1854-1891) – Poeta francês da escola simbolista, movimento literário e das artes plásticas do final do século XIX. A maior parte da obra de Rimbaud foi criada antes dos seus vinte anos.


“Passo a passo
Pégasus, pegadas
Pelo espaço a conquistar
Bola de neve, morro abaixo
Sempre em frente
Pra cima, pro alto
...
Há muito já não somos
Como já fomos – todos iguais
Iguais a poucos que ainda andam
Iguais a todos que andam loucos
Iguais a loucos que ainda andam”
- Humberto Gessinger


Chego ao pensionato. Não cruzo com a Medusa até o meu quarto. Escapo, incólume. Por quanto tempo, estranho cabisbaixo?
Meu quarto: não sei quantos metros quadrados ou qualquer porcaria dessa natureza tem aqui. Sou péssimo em matemática. Mas, sei que é pequeno pra burro. Quando entro nele, vejo aqui todo meu universo. Muito pequeno. Talvez aumente se eu encontrar as respostas para minhas perguntas. A reunião de amanhã, no Piano Bar, faz parte disso. Antes, porém, para que meu apequenado universo esteja seguro, tranco a porta. Tenho medo da Medusa ou de algum dos seus esfomeados lobos invadirem meu quarto, durante a noite. Me vê uma porçãozinha de pernil de Messina, por favor.
Olho ao redor. E nesse olhar, percebo que falta algo em meu quarto, excetuando-se a minha substância, obviamente. Recapitulo:

* Uma cama com um colchão fino e rasgado fedendo a mofo;
* Uma cômoda onde guardo minhas roupas e meus CDs;
* Uma cadeira;
* Um computador.

Algo está faltando. Seria um espelho na parede? De forma alguma. Odeio espelhos. Não me olho num espelho há anos. O que falta em meu quarto é importante, vital. Mas não consigo identificar exatamente o que é. Paro. Penso. Olho ao redor. Ouço passos do lado de fora. Passos que se aproximam. Meu coração acelera – deve ser ELA, a razão dos meus pesadelos. Fico em silêncio para não chamar sua atenção. E em silêncio, examino o quarto, novamente. Paro. Penso. Falta algo. Mas o quê? De repente, ele aparece e eu me lembro. Sai de trás da cômoda, parecendo feliz com minha chegada. É ele: RAUL. Meu rato, meu mascote. Inicialmente um visitante ocasional atrás de comida. Hoje, um companheiro de quarto. Mas não divide comigo as despesas. Grande Raul!
Ele realmente parece feliz com minha chegada. Corre dum lado para o outro. Fico satisfeito em saber que alguém se alegra com minha presença. Mas o bicho faz muito barulho. Levo o dedo aos lábios.
- Quieto, Raul. Você não quer atrair a atenção da Medusa, quer?
Raul é um rato esperto. Ele pára no mesmo instante. Encara-me, assustado com a perspectiva que acabo de lhe trazer à atenção. Que rato não se assustaria com ignominiosa probabilidade? Então, ele volta para trás da cômoda na ponta dos pés. Grande Raul!
Ouço os passos novamente. Mais próximos. Bem próximos. Fico estático. Olho para a porta. Tenho a impressão de que um monstro vai entrar quarto adentro. A porta vindo ao chão e eu, vulnerável como Raul. Estou morto. Definitivamente morto.
Mas ao invés da porta ser arrombada, percebo um papel deslizando por debaixo desta, para o interior do quarto. Fico imóvel. O papel também. Cena medonha. Os passos se fazem ouvir, novamente, desta feita se afastando. Lentamente, como num filme de terror (minha vida é um filme de terror, e eu sou um ator coadjuvante – acho que já falei sobre isso), vou até a porta e pego o papel. É um bilhete, um pedaço de uma folha de caderno Tilibra. E nele está escrito:

“DEIXA TEUS ALUNOS EM PAZ, LUNÁTICO, OU JAMAIS ENCONTRARÁS A SAÍDA DESTE HOSPÍCIO”

segunda-feira, julho 10

Se tudo o que chega ao fim tem um princípio, então, preciso dar início à minha vida antes que ela se acabe.
Penso nisso várias vezes enquanto dou minha aula, enleado com meus pontos de interrogação, inclusive o existente entre Rimbaud e Humberto Gessinger. Ainda não encontrei a resposta, mas estou chegando lá.
Agora, fito meus alunos. Tudo me parece repetitivo ali. Um filme em preto-e-branco, reprisado assiduamente durante as madrugadas. Eles, estáticos. Como eu. E parecem em dúvida. Como eu. Concluo que já passa da hora deles nascerem. Estão vinte, vinte e cinco, alguns até trinta anos atrasados. O registro de cada um diz que nasceram, mas isso é apenas mais um engano do sistema burocrático. Eu e eles – somos embriões. Conseguiremos nascer? Eis a causticante interrogação.
Chego, enfim, aos últimos cinco minutos de aula – os piores. Debruço-me sobre um livro de não sei quem. Não presto atenção no que leio, apenas no que penso. Espero os cinco minutos passar. Os alunos não ficam impacientes com meu silêncio – eles já me conhecem o bastante. Silêncio, eis teu súdito aos teus pés. Então, os cinco minutos se vão, procumbentes. E meus alunos começam a se levantar. Já passa da hora de todos nós nascermos! Eu sei que sim.
Levanto-me. Vou até o quadro-negro, e escrevo:

“SE TEM PESADELOS A NOITE, MAS ACHA QUE PODE SALVAR O MUNDO, PERMANEÇA EM SEU LUGAR”

Então, volto à minha cadeira e ao livro de não sei quem. Mantenho a cabeça baixa. Ouço ruídos. Cochichos. Uma ou outra risada. Alunos e mais alunos deixando a sala. Confusão em minha mente. Minha pele desprendendo-se, suavemente, do meu corpo. E assim, vou diminuindo. Cada vez menor. Menor... Vários minutos se passam. Não sei quantos. Talvez cinco. Talvez trinta. Talvez eu esteja voltando no tempo, como um McFly.
Não vejo nada. Minha visão periférica não alcança nada além de minha mesa e de minha pele desprendida. Acho que estou sozinho, em minha sala. Todos foram embora, provavelmente. Ficamos eu e meus restos. Vou juntar tudo e ver se construo um rato... Então, lentamente ergo a cabeça.
E, para minha surpresa, vejo dez alunos, estáticos, em seus lugares. Eles me encaram. Esperam. Querem nascer. Por isso, esperam. Não sorrio com nenhum canto de minha boca. Há demasiada seriedade no momento para isso. A vida de dez jovens e um professor lunático está em jogo. Não sorrio. Não mesmo.
Vou novamente ao quadro-negro e escrevo:

“PIANO BAR. QUARTA-FEIRA. 21h00”

Saio da sala.
Para todos os efeitos, a aula está acabada.

quarta-feira, julho 5

Já teve o seu pesadelo hoje? Eu, sim. Para ser mais exato, soturnamente exato, estou tendo um pesadelo nesse preciso momento.
Meu corpo treme. Suor. Pânico. Sombras que vêm e vão. O alvorecer tão distante quanto meus sonhos de criança. E diante dos meus olhos, vejo tronco e membros. O tronco e os membros de dona Madalena. Nada de cabeça. Não mesmo. Não olharei nos olhos dessa mulher por nada nessa vida. Querer escapar de uma sentença, como esse meu vazio, é uma coisa; ficar petrificado no meio do corredor desse pardieiro, é outra bem diferente. Estou fora do páreo, mas ainda remanesce uma partícula ígnea de bom juízo dentro desse corpo apagado e esquecido pela humanidade.
Ela faz silêncio. E no seu silêncio, ouço o sibilar das serpentes em sua cabeça. Suor. Pânico. Sombras que vêm e vão.
Qual o seu problema, senhor Messina? Seu aluguel está atrasado, mais uma vez. Sabia que é o único a atrasar os pagamentos? Eu esperava mais dignidade de um professor, no cumprimento dos seus deveres. Será que estou exagerando, senhor Messina?
Eu... eu pago a... a senhora em minutos.
Ela dá um passo em minha direção. O silvar serpentífero se torna mais intenso.
“Minutos” é muito tempo, senhor Messina. O senhor tem apenas um minuto.
Ela carrega sua frase da forma mais ameaçadora possível. Eu sei do que ela é capaz. Transformar-me em pedra. Ou coisas piores. Ouço lobos à noite, durante minhas horas de insônia. Ela cria lobos em seu quarto. E se ela me arrastar até lá, onde seus famintos lobos de estimação me fracionarão em pedacinhos comestíveis? Me vê quinhentos gramas de peito de Messina, por favor. Lobos vorazes. Lobos famintos de professores que esmolam um sentido na vida.
Sem mais uma palavra sequer, giro sobre meus calcanhares e corro para o quarto. Ela me deu um minuto? Nunca minha vida dependeu de tão pouco tempo.

Noite de quarta-feira.
Em uma mesa, cinco figuras que se entendem muito bem. Eu, Lucas, Cris e duas cervas. Lucas e Cris discutem J. D. Salinger. Eu e as duas garrafas acompanhamos a conversa, em silêncio. Na verdade, eu não acompanho nada. Não estou conseguindo me concentrar, ultimamente. Ando tendo pesadelos. Muitas questões em minha mente. Estou atrofiando. Meu semblante denuncia o meu fim.
E o que você acha sobre isso, Mestre? – Sou tirado do meu devaneio.
Por que o Lucas insiste em me chamar de “Mestre”? Às vezes, tenho vontade de mandá-lo pro inferno. Às vezes, acho que só estou vivo por causa dele. Mas, na maioria das vezes, eu não acho porcaria nenhuma de coisa alguma.
Tomo um gole da cerveja. Encaro meus observadores. As garrafas em silêncio. Lucas e seu olhar idólatra. Cris e sua feição ingênua de Amelié Poulain.
“Sossego, não nego / Enxergo quando puder / Só vejo o obscuro objeto / Desejo indireto / Será que você me entende?”
Toca Betão, Messina. Toca Betão. – Lucas, o entusiasmado. Se eu arrotar, ele aplaude e solta rojões.
Messina, presta atenção no que eu tô falando. – Cris, a incompreensível de olhar meigo.
Solto o copo. Inclino-me. Os quatro se encolhem. Respeitam-me como a um pai. Calam-se diante do prenúncio de minhas palavras.
Se lhe fugirem as respostas certas de uma pergunta inexata, declame um poema. Um poema responde a todas as perguntas, inclusive, as erradas.
Cris dá uma risadinha um tanto quanto esnobe.
Não vejo qualquer relação entre poemas e Engenheiros do Hawaii.
– Talvez por isso seja incapaz de arrumar um namorado, como qualquer garota da sua idade. – Eu consigo ser bastante cruel quando quero.
Ela parece abatida com a minha declaração. Mas logo se recompõe.
Vejam só. Falou o grande femeeiro.
Rio com os dois cantos da boca. Gostei do “femeeiro”.
Meu caso é diferente, Cris. Eu já desisti de viver há muito tempo. Ou a vida desistiu de mim, tanto faz. Minhas veias enferrujaram enquanto uma canção de ninar ainda te fazia dormir. O fim da linha, o meu fim da linha, está lá atrás. Bem atrás. Porque quanto mais eu crescia, mais me convencia de que menor ficava o meu universo. Mas o que você está fazendo com sua vida, garota? O que vai conseguir bebendo cerveja com um idiota nessa podre noite maringaense? Vai querer terminar como eu? Sua vida não precisa ser mais um clichê hollywoodiano, garota. Reescreva o seu roteiro. Surpreenda a platéia. Faça algo por você, Cris.
É o que estou tentando fazer.
Mas não vai conseguir enquanto se prender ao óbvio e aos ditames da moda.
Ei... Eu não sou escrava da moda.
Você é escrava da sua consciência fraca e desorientada.
Eu não sou desorientada.
Todos são, mas nem todos permanecem. De que lado você vai estar?
Então me diga, sabichão: onde se esconde essa elucidação?
Alguns segundos em silêncio, para dramatizar o momento.
Cris, me responda, sinceramente: o que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger?
Ela ri.
Eu sei lá. O quê?
Um ponto de interrogação. E todo ponto de interrogação exige uma resposta... De ponto de interrogação em ponto de interrogação você encontrará todas as respostas de que precisa.
Ela absorve o que digo, sem piscar. Cris e o silêncio.
Não sei porque falei essas coisas para ela. Talvez por sentir que o final da minha história se aproxima e que passa da hora de fazer uma “boa ação”. Ou talvez por achar que ainda há esperança para a humanidade. Uma combinação das duas coisas, ou uma subtração das mesmas.
Mas, agora, olhando para aquele rostinho que luta em assimilar minhas palavras, me pergunto o que seria da minha vida se eu resolvesse acatar meus próprios conselhos. E se eu resolvesse substituir todos os meus pontos de interrogação por pontos finais? Teria eu em minhas mãos o poder da decisão? Será que assim eu romperia falsos destinos, decifraria códigos, ditaria ordens ao amanhã?
O Lucas está falando alguma coisa, dizendo que sou porrada no último, mas nem presto atenção. Estou em outra dimensão. Vejo vários pontos de interrogação, de joelhos, implorando respostas.
E então, no meio dessa dimensão interrogativa, chego à minha primeira solução: o silêncio se calará quando eu combinar meus sonhos com a realidade.
E entre sonhos e realidade, me proponho o desafio de esclarecer, de uma vez por todas, a questão:

“O QUE HÁ ENTRE RIMBAUD E HUMBERTO GESSINGER?”

segunda-feira, julho 3


A medusa existe, e se chama dona Madalena”.
Foi essa a primeira frase que ouvi assim que me mudei para o pensionato da dona Madalena, o local onde moro, na Quintino Bocaiúva. A segunda conseguiu ser tão enigmática quanto a primeira: “Jamais olhe nos seus olhos. Ela pode petrificá-lo”.
O responsável pelas frases foi um cambaleante jovem bêbado, sem camisa. Não sei explicar minhas razões (e quem é que sabe?), mas jamais ignorei jovens bêbados, sem camisa. De alguma forma, eles exercem um poder filosofal sobre mim, como se fosse possível extrair alguma sabedoria e precaução dos seus olhos fundos, expressão abobada e voz lânguida. Por isso, protegi aquelas frases no canto mais seguro de minha memória. Eu sabia que elas me seriam tão úteis quanto a poesia de Marcelo Camelo.

Sejam bem-vindos. Este é o meu casulo, digo, pensionato.
Moramos em quatro no pensionato, excluindo a proprietária. Dos três jovens, dois fazem cursinho e o outro, Lucas, ser desprovido de qualquer sanidade, cursa Letras. Já varamos madrugadas filosofando sobre Shakespeare e Renato Russo, sobre Fante e Paulo Lucká. Em madrugadas como essa, achei que a vida valia a pena. Em que momento perdi o elo com o equilíbrio? Quando foi que as densas nuvens resolveram fazer moradia em minha vida? Já cantaria Mick Jagger: “Perca seus sonhos, e perderá o juízo”. Talvez eu tenha assassinado meus sonhos, prematuramente. Ou, talvez, eu nem tenha dado chance de eles nascerem. De qualquer maneira, vejo meus sonhos estirados sobre o nada, sem vida, sem nenhuma contemplação.
Alguém aí se sente como eu?
Meu caminhar é lento. É difícil sermos mais rápidos do que nossas próprias vidas. Por isso, caminho tão devagar. Para ser honesto, eu rastejo. Se encontrarem pedaços aí atrás, guardem cuidadosamente, por favor. São os meus restos. Se juntarem, talvez consigam montar um bom e eficiente cachorro.
Nesse momento, do fundo do corredor, vem uma estranha criatura de olhos fundos, expressão abobada e voz lânguida. É o Lucas. Ele abre os braços, ridículo:
– Grande Messina! O poeta que dá nó nas rimas, que incendeia os botecos. Pisa na contracultura, Messina. Pisa.
Levo o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio. Ou, pelo menos, que ele não seja tão escandaloso. E em voz baixa, digo:
– No dia em que Humberto Gessinger for aceito como poeta, não precisarei sequer ter pés. Quanto menos, pisar.
– Mas pisa, Messina – implora. – Pisa mesmo assim, meu velho, que eu quero ouvir os ossos da imbecilidade, estalar. Tô cansado desse atraso mental.
É um bom garoto, sem dúvida. Tem amor pelas letras. À nossa maneira, mas ama as letras como a própria vida.
Não estou me sentindo muito bem (e quando é que estive?). Estou precisando dar umas voltas. Contemplar momentos. Parar o relógio e ditar as regras. Respirar um pouco de ar, senão puro, pelo menos que não seja tão pesado quanto o ar estagnado do pensionato. Motivos vários, agregados; por isso, sugiro:
– Façamos o seguinte: vamos convocar a Cris para uma discussão na Pilekinhu, quarta a noite. – Olho ao redor como se estivesse dentro dum sepulcro. – Aqui não é o lugar apropriado para esse tipo de discussão.
– Eis as ordens do mestre Messina. – Ele se curva em reverência. – E eis aqui o seu humilde escravo para executá-las.
É um bom garoto. Com umas atitudes bastante idiotas, mas é um bom garoto.
Ele se vai, falando alguma coisa sobre “reunião”, “movimento”, “Mestre Messina” e outras baboseiras. Ele poderia mudar toda a cultura (ou parte dela), mas o mundo nunca daria ouvido a um jovem bêbado, e sem camisa.
Suspiro. Penso em ir para meu quarto. Mas não abandono a fase “pensamento” para adentrar a fase “ação”. E se não o faço, é devido àquela voz lúgubre me chamando:
– Senhor Messina!
Um filete gélido percorrer minha espinha. Para ser sincero, percorre todo o meu corpo. É um filme de terror. E sou apenas um coadjuvante. E tremo ao me dar conta de que todos os coadjuvantes morrem, nos filmes de terror.
Lentamente, e temeroso como um rato, me volto na direção da áspera e autoritária voz que me chama.
E, diante de sua cabeça repleta de venenosas serpentes, criatura gorgônea, me deparo com ela.
A Medusa.

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