quinta-feira, julho 20

Três horas depois. Ou seriam três anos? Pouco importa. No causticante momento da morte, perco a noção do tempo.

Estou sentado em minha cama, olhos bem abertos, dois bilhetes em mãos. Raul, a princípio, ficou parado me observando; achei que era por preocupação, mas me enganei. Ele provavelmente esperava um pedaço de pão. Às vezes, dou-lhe um pedaço do miolo – do pão, obviamente. Em dia de pagamento, até presenteio meu camarada com um pedaço de queijo. Mas quando não dou nada, Raul fica indignado... como hoje. Em protesto, ele foi para trás da cômoda e começou a roê-la numa barulheira infernal. Se Raul fosse humano, ele provavelmente seria um ativista.
Em mãos, ainda, os bilhetes. Bela e familiar caligrafia a dela. Por que digo “familiar”? Não sei. Só sei que me parece familiar. Por que digo “dela”? Porque não consigo conceber outro responsável pelo crime de me ameaçar senão aquela que carrega em si todos os malefícios universais: a Medusa. Mas me questiono também: será que uma mulher com serpentes na cabeça teria uma escrita tão bem cuidada, uniforme e elegante, como aquela? Difícil responder – não seria tão difícil se eu me correspondesse com Esteno ou Euríale.
Como ela soube que estou tentando respirar e dar um pouco de ar àqueles jovens? Será que fui delatado por algum dos meus alunos? Ou será que ela pode ouvir meus pensamentos?
- Malditos pontos de interrogação – vocifero.
Raul, assustado, põe a cabecinha para fora para conferir meu estado. Ele não está acostumado com essas reações.
Enfio os bilhetes no bolso. Extravase, Messina. Mas extravase na hora e presença certas. Por que não extravasar diante dela? Não estou inteiro, afinal? Por que não aproveito o momento ímpar e enfrento essa mulher? A propósito, por que não paro com essa angustiante mania de fazer perguntas?
Levanto-me com destemor. Messina com destemor – até parece piada. Já disse que sou bom em fazer piadas?
Olho para Raul. Ele parece perceber que algo grandioso está para acontecer e, por isso, assiste tudo com vívido interesse.
- Se eu não voltar em vinte e quatro horas, pode roer toda a cômoda, amigo.
Ele não parece disposto a esperar o desaparecimento oficial do inquilino do quarto. De imediato, volta para trás do móvel e recomeça a roedura.
Quanto a mim, o homem das interrogações, saio do meu quarto, confiante diante do meu objetivo. Estou mudado. Pareço mudado, realmente. Vou até o quarto dela – novamente estou lá, diante daquela porta. Não ouço o ronco – a porta e a parede não vibram. Não ouço uivos. Ela está aí dentro? Só há uma maneira de saber. Levo a mão à porta. E bato com vigor. Eu não acredito que estou fazendo isso. Mas estou.
E não pretendo pagar o aluguel.
Lentamente, a porta se abre. Uma brisa impetuosa sai de dentro do quarto. Sinto um cheiro estranho, parecido com mofo. Mofo lembra sepulcro. Sepulcro lembra o lugar para onde ela pretende me mandar diante do meu arrostar.
Quando a figura gorgônea emerge do quarto, olho para baixo, súbita e mecanicamente.
- Senhor Messina? Espero que tenha um bom motivo para me incomodar.
Engulo em seco.
- Eu... eu... eu... – Paro na busca desesperada pelo ar, agora, rarefeito.
- Estou esperando. E quanto mais espero, mais me indisponho. – Nunca havia reparado que ela parece ser uma mulher culta.
O universo nesse instante sofre um cataclismo. Convulsão universal. Passos fora da estrada. Abalos. Nada em seu lugar. E a razão é que eu, o rei dos covardes, resolvo responder. Acreditem: eu RESPONDO.
- Se a senhora tem colocado bilhetes debaixo da minha porta, acho melhor parar.
Vejo seus pés. Ela dá um passo em minha direção, ameaçadora.
- Do que está falando, seu moleque?
- Se voltar a fazer isso, eu...
Não diga ainda, Messina. Ainda não. Conclua sua frase, mas conclua olhando nos olhos dela. É a única maneira dessa mulher te respeitar. Olhe nos olhos dela, Messina, e profira sua derradeira e maledicente ameaça.
Sem pensar nas conseqüências, começo a erguer a cabeça. Olho para as pernas dela, seu quadril, contemplo todo seu tronco, vejo seu pescoço, seu queixo, sua boca, seu nariz, e...
Alguém aparece do meu lado, agarra meu braço e me arrasta, de forma violenta.
É Lucas. Ele me puxa para fora do pensionato como se este estivesse em chamas.
- Tá maluco, mano? O que você pensa que tá fazendo?
- Estava enfrentando aquela criatura, até que a porcaria dum intempestivo surgiu do meu lado e atrapalhou tudo.
- Intempestivo? Eu? Acha que está preparado para enfrentar a Medusa?
- Eu não sei. O que sei é que preciso de respostas.
- Que tipo de respostas?
- Acho que essa mulher está me ameaçando.
Lucas agarra meu braço, novamente, e me arrasta, dessa vez para mais longe – quanto mais longe, mais seguro.
- Diz aí. O que te aflige, Messina?
Hesito – eu vivo hesitando. Quando não estou fazendo perguntas, estou hesitando. Não passo de um hesitante indagador.
Enfio a mão no bolso e pego os dois bilhetes.
- Encontrei isso em meu quarto. Colocaram por debaixo da porta. Quero saber quem está fazendo essa brincadeira comigo. Acho que a dona Madalena tem algo a ver com isso.
- Quando achou?
- O primeiro, terça passada. Esse outro, agora a pouco, quando voltamos do Piano Bar.
Lucas fica me olhando. Sério. Examina-me. Após alguns instantes, começa a rir. Ri muito. “Gargalha”, para ser mais exato.
- Posso saber a razão da graça?
- Você é o maluco mais doidão que eu conheço, Messina. – Ele mal consegue falar de tanto rir.
- Do que está falando?
- Ora, você sabe muito bem quem colocou esse bilhete debaixo da sua porta.
- Sei?
- Claro que sabe.
- Não, eu não sei.
- Claro que sabe, maluco. – Ele pára de rir. – Ora, mestre, você colocou.
Agora sou eu quem ri.
- Eu? Qual é, Lucas? É a ressaca de ontem?
- Eu bem que achei estranho. A gente chega do Piano Bar, eu vou para o meu quarto, você para o seu. De repente, me lembro de te falar algo sobre o movimento. Vou até o seu quarto. Então o que vejo? Meu amigo Messina, ajoelhado no chão, escrevendo alguma coisa num papel. Logo em seguida, meu amigo dobra o papelzinho e enfia debaixo de sua porta. E depois, simplesmente, entra no quarto, sem mais nem menos.
- Você enlouqueceu.
- Eu? Tem certeza?
O que está acontecendo? Ele só pode estar brincando comigo. Então, por que estou apavorado? Sua declaração é absurda, mas estou terrivelmente assustado. Parece existir alguma razão recôndita no encalço de suas palavras. Ele recomeça a rir. Ri sem parar.
Eu não escrevi esses bilhetes.. eu não escrevi... A caligrafia. A bela e familiar caligrafia. Por que “familiar”? Por quê? Porque a caligrafia no bilhete é mi... Não! Não! Por Deus, não!
Feche os olhos. Concentre-se, Messina. Concentre-se.
E recapitule.

Onde você estava?
Eu estava ali, parado diante da porta do quarto da dona Madalena. Eu me afastei. Fui para o meu quarto, abri minha porta. Só isso? Não, estou me esquecendo de algo. Concentre-se, imbecil. Eu não abri a porta, de imediato. O que eu fiz antes? Eu enfiei a mão no bolso e peguei... e peguei... um pedaço de papel e uma caneta. E escrevi algo... O que eu escrevi? O quê? Eu escrevi... eu escrevi:
“TUA REBELDIA SERÁ TUA SENTENÇA, AMIGO. TEU SONHO DE UM SENTIDO NA VIDA É PURA TOLICE. OU ME ESCUTA AGORA, OU, ENTÃO, DIGA ADEUS, MESSINA”
E, então, dobrei o papel e enfiei debaixo da porta. Entrei no quarto. Acendi a luz. E o Raul me olhou, assustado.
Por Deus, não! Não pode ser verdade.
Volto a abrir meus olhos. Lucas está vermelho de tanto rir.
- Tu é doidão, mano. Doidão no último.
Eis a minha retratação: dessa vez, dona Madalena é inocente.
E, por favor, um último ponto de interrogação.
Que porcaria está acontecendo comigo?

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