quarta-feira, julho 5

Já teve o seu pesadelo hoje? Eu, sim. Para ser mais exato, soturnamente exato, estou tendo um pesadelo nesse preciso momento.
Meu corpo treme. Suor. Pânico. Sombras que vêm e vão. O alvorecer tão distante quanto meus sonhos de criança. E diante dos meus olhos, vejo tronco e membros. O tronco e os membros de dona Madalena. Nada de cabeça. Não mesmo. Não olharei nos olhos dessa mulher por nada nessa vida. Querer escapar de uma sentença, como esse meu vazio, é uma coisa; ficar petrificado no meio do corredor desse pardieiro, é outra bem diferente. Estou fora do páreo, mas ainda remanesce uma partícula ígnea de bom juízo dentro desse corpo apagado e esquecido pela humanidade.
Ela faz silêncio. E no seu silêncio, ouço o sibilar das serpentes em sua cabeça. Suor. Pânico. Sombras que vêm e vão.
Qual o seu problema, senhor Messina? Seu aluguel está atrasado, mais uma vez. Sabia que é o único a atrasar os pagamentos? Eu esperava mais dignidade de um professor, no cumprimento dos seus deveres. Será que estou exagerando, senhor Messina?
Eu... eu pago a... a senhora em minutos.
Ela dá um passo em minha direção. O silvar serpentífero se torna mais intenso.
“Minutos” é muito tempo, senhor Messina. O senhor tem apenas um minuto.
Ela carrega sua frase da forma mais ameaçadora possível. Eu sei do que ela é capaz. Transformar-me em pedra. Ou coisas piores. Ouço lobos à noite, durante minhas horas de insônia. Ela cria lobos em seu quarto. E se ela me arrastar até lá, onde seus famintos lobos de estimação me fracionarão em pedacinhos comestíveis? Me vê quinhentos gramas de peito de Messina, por favor. Lobos vorazes. Lobos famintos de professores que esmolam um sentido na vida.
Sem mais uma palavra sequer, giro sobre meus calcanhares e corro para o quarto. Ela me deu um minuto? Nunca minha vida dependeu de tão pouco tempo.

Noite de quarta-feira.
Em uma mesa, cinco figuras que se entendem muito bem. Eu, Lucas, Cris e duas cervas. Lucas e Cris discutem J. D. Salinger. Eu e as duas garrafas acompanhamos a conversa, em silêncio. Na verdade, eu não acompanho nada. Não estou conseguindo me concentrar, ultimamente. Ando tendo pesadelos. Muitas questões em minha mente. Estou atrofiando. Meu semblante denuncia o meu fim.
E o que você acha sobre isso, Mestre? – Sou tirado do meu devaneio.
Por que o Lucas insiste em me chamar de “Mestre”? Às vezes, tenho vontade de mandá-lo pro inferno. Às vezes, acho que só estou vivo por causa dele. Mas, na maioria das vezes, eu não acho porcaria nenhuma de coisa alguma.
Tomo um gole da cerveja. Encaro meus observadores. As garrafas em silêncio. Lucas e seu olhar idólatra. Cris e sua feição ingênua de Amelié Poulain.
“Sossego, não nego / Enxergo quando puder / Só vejo o obscuro objeto / Desejo indireto / Será que você me entende?”
Toca Betão, Messina. Toca Betão. – Lucas, o entusiasmado. Se eu arrotar, ele aplaude e solta rojões.
Messina, presta atenção no que eu tô falando. – Cris, a incompreensível de olhar meigo.
Solto o copo. Inclino-me. Os quatro se encolhem. Respeitam-me como a um pai. Calam-se diante do prenúncio de minhas palavras.
Se lhe fugirem as respostas certas de uma pergunta inexata, declame um poema. Um poema responde a todas as perguntas, inclusive, as erradas.
Cris dá uma risadinha um tanto quanto esnobe.
Não vejo qualquer relação entre poemas e Engenheiros do Hawaii.
– Talvez por isso seja incapaz de arrumar um namorado, como qualquer garota da sua idade. – Eu consigo ser bastante cruel quando quero.
Ela parece abatida com a minha declaração. Mas logo se recompõe.
Vejam só. Falou o grande femeeiro.
Rio com os dois cantos da boca. Gostei do “femeeiro”.
Meu caso é diferente, Cris. Eu já desisti de viver há muito tempo. Ou a vida desistiu de mim, tanto faz. Minhas veias enferrujaram enquanto uma canção de ninar ainda te fazia dormir. O fim da linha, o meu fim da linha, está lá atrás. Bem atrás. Porque quanto mais eu crescia, mais me convencia de que menor ficava o meu universo. Mas o que você está fazendo com sua vida, garota? O que vai conseguir bebendo cerveja com um idiota nessa podre noite maringaense? Vai querer terminar como eu? Sua vida não precisa ser mais um clichê hollywoodiano, garota. Reescreva o seu roteiro. Surpreenda a platéia. Faça algo por você, Cris.
É o que estou tentando fazer.
Mas não vai conseguir enquanto se prender ao óbvio e aos ditames da moda.
Ei... Eu não sou escrava da moda.
Você é escrava da sua consciência fraca e desorientada.
Eu não sou desorientada.
Todos são, mas nem todos permanecem. De que lado você vai estar?
Então me diga, sabichão: onde se esconde essa elucidação?
Alguns segundos em silêncio, para dramatizar o momento.
Cris, me responda, sinceramente: o que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger?
Ela ri.
Eu sei lá. O quê?
Um ponto de interrogação. E todo ponto de interrogação exige uma resposta... De ponto de interrogação em ponto de interrogação você encontrará todas as respostas de que precisa.
Ela absorve o que digo, sem piscar. Cris e o silêncio.
Não sei porque falei essas coisas para ela. Talvez por sentir que o final da minha história se aproxima e que passa da hora de fazer uma “boa ação”. Ou talvez por achar que ainda há esperança para a humanidade. Uma combinação das duas coisas, ou uma subtração das mesmas.
Mas, agora, olhando para aquele rostinho que luta em assimilar minhas palavras, me pergunto o que seria da minha vida se eu resolvesse acatar meus próprios conselhos. E se eu resolvesse substituir todos os meus pontos de interrogação por pontos finais? Teria eu em minhas mãos o poder da decisão? Será que assim eu romperia falsos destinos, decifraria códigos, ditaria ordens ao amanhã?
O Lucas está falando alguma coisa, dizendo que sou porrada no último, mas nem presto atenção. Estou em outra dimensão. Vejo vários pontos de interrogação, de joelhos, implorando respostas.
E então, no meio dessa dimensão interrogativa, chego à minha primeira solução: o silêncio se calará quando eu combinar meus sonhos com a realidade.
E entre sonhos e realidade, me proponho o desafio de esclarecer, de uma vez por todas, a questão:

“O QUE HÁ ENTRE RIMBAUD E HUMBERTO GESSINGER?”

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