segunda-feira, julho 3


A medusa existe, e se chama dona Madalena”.
Foi essa a primeira frase que ouvi assim que me mudei para o pensionato da dona Madalena, o local onde moro, na Quintino Bocaiúva. A segunda conseguiu ser tão enigmática quanto a primeira: “Jamais olhe nos seus olhos. Ela pode petrificá-lo”.
O responsável pelas frases foi um cambaleante jovem bêbado, sem camisa. Não sei explicar minhas razões (e quem é que sabe?), mas jamais ignorei jovens bêbados, sem camisa. De alguma forma, eles exercem um poder filosofal sobre mim, como se fosse possível extrair alguma sabedoria e precaução dos seus olhos fundos, expressão abobada e voz lânguida. Por isso, protegi aquelas frases no canto mais seguro de minha memória. Eu sabia que elas me seriam tão úteis quanto a poesia de Marcelo Camelo.

Sejam bem-vindos. Este é o meu casulo, digo, pensionato.
Moramos em quatro no pensionato, excluindo a proprietária. Dos três jovens, dois fazem cursinho e o outro, Lucas, ser desprovido de qualquer sanidade, cursa Letras. Já varamos madrugadas filosofando sobre Shakespeare e Renato Russo, sobre Fante e Paulo Lucká. Em madrugadas como essa, achei que a vida valia a pena. Em que momento perdi o elo com o equilíbrio? Quando foi que as densas nuvens resolveram fazer moradia em minha vida? Já cantaria Mick Jagger: “Perca seus sonhos, e perderá o juízo”. Talvez eu tenha assassinado meus sonhos, prematuramente. Ou, talvez, eu nem tenha dado chance de eles nascerem. De qualquer maneira, vejo meus sonhos estirados sobre o nada, sem vida, sem nenhuma contemplação.
Alguém aí se sente como eu?
Meu caminhar é lento. É difícil sermos mais rápidos do que nossas próprias vidas. Por isso, caminho tão devagar. Para ser honesto, eu rastejo. Se encontrarem pedaços aí atrás, guardem cuidadosamente, por favor. São os meus restos. Se juntarem, talvez consigam montar um bom e eficiente cachorro.
Nesse momento, do fundo do corredor, vem uma estranha criatura de olhos fundos, expressão abobada e voz lânguida. É o Lucas. Ele abre os braços, ridículo:
– Grande Messina! O poeta que dá nó nas rimas, que incendeia os botecos. Pisa na contracultura, Messina. Pisa.
Levo o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio. Ou, pelo menos, que ele não seja tão escandaloso. E em voz baixa, digo:
– No dia em que Humberto Gessinger for aceito como poeta, não precisarei sequer ter pés. Quanto menos, pisar.
– Mas pisa, Messina – implora. – Pisa mesmo assim, meu velho, que eu quero ouvir os ossos da imbecilidade, estalar. Tô cansado desse atraso mental.
É um bom garoto, sem dúvida. Tem amor pelas letras. À nossa maneira, mas ama as letras como a própria vida.
Não estou me sentindo muito bem (e quando é que estive?). Estou precisando dar umas voltas. Contemplar momentos. Parar o relógio e ditar as regras. Respirar um pouco de ar, senão puro, pelo menos que não seja tão pesado quanto o ar estagnado do pensionato. Motivos vários, agregados; por isso, sugiro:
– Façamos o seguinte: vamos convocar a Cris para uma discussão na Pilekinhu, quarta a noite. – Olho ao redor como se estivesse dentro dum sepulcro. – Aqui não é o lugar apropriado para esse tipo de discussão.
– Eis as ordens do mestre Messina. – Ele se curva em reverência. – E eis aqui o seu humilde escravo para executá-las.
É um bom garoto. Com umas atitudes bastante idiotas, mas é um bom garoto.
Ele se vai, falando alguma coisa sobre “reunião”, “movimento”, “Mestre Messina” e outras baboseiras. Ele poderia mudar toda a cultura (ou parte dela), mas o mundo nunca daria ouvido a um jovem bêbado, e sem camisa.
Suspiro. Penso em ir para meu quarto. Mas não abandono a fase “pensamento” para adentrar a fase “ação”. E se não o faço, é devido àquela voz lúgubre me chamando:
– Senhor Messina!
Um filete gélido percorrer minha espinha. Para ser sincero, percorre todo o meu corpo. É um filme de terror. E sou apenas um coadjuvante. E tremo ao me dar conta de que todos os coadjuvantes morrem, nos filmes de terror.
Lentamente, e temeroso como um rato, me volto na direção da áspera e autoritária voz que me chama.
E, diante de sua cabeça repleta de venenosas serpentes, criatura gorgônea, me deparo com ela.
A Medusa.

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