segunda-feira, julho 24

Há confusão. Tênue linha entre o caos e os meus sapatos. Um oceano de profundidade mínima, um afogamento irreversível. Com quantos atos insanos se faz um louco? A resposta está no olhar absurdo com que encaro o mundo ao meu redor.
Estou sendo perseguido. Alguém no meu encalço. Alguém em ameaça. Tento me esquivar, encontrar um refúgio, um lugar seguro. Mas, definitivamente, não há como fugir, Messina.
O perseguidor é você mesmo.

Vultos. Diversos vultos. Olham-me. Cercam-me. Sussurram frases desconexas em meus ouvidos. Na maioria das vezes, ouço apenas murmúrios. Queria dar-lhes atenção. Queria sorrir-lhes. Mentes geniais. Todos eles, poetas entre leituras e estudo. Mas um louco como eu não deveria sequer estar aqui, ocupando essa estimada posição – professor destes jovens que respiram. Ainda não estou salivando, mas alguém aí saberia me dizer até quando?
Meus alunos se curvam no altar do Entusiasmo. Estão crescendo. Os dias se esforçam, mas não conseguem acompanhá-los. São efetivos, manifestam-se através de efeitos reais. Alguns deles publicam crônicas e poemas em jornais, outros já estão escrevendo romances e peças de teatro; e há quem se arrisque em esboçar novelas. Um aluno chamou colegas de outros cursos e montaram uma banda. Segundo eles, uma banda que une Renato Russo a Fernando Pessoa, Humberto Gessinger a Paulo Leminski. Quase lhes disse que querer ser genial é uma coisa, blasfemar é outra, mas acabei ficando quieto. Afinal, sou apenas um observador interessado.
Mas sinto orgulho deles. Não estou em condições de sentir coisa alguma, devido minha alienação. Mas sei que eles querem ser ouvidos. E sei que serão. Tolos os que acham que estou exagerando.
São guerreiros, e não vão desistir tão fácil assim.

Depois daquele dia, nunca mais vi a dona Madalena. Fujo dela. Às vezes, acho que ela foge de mim. Será que a impressionei com minha atitude firme, confrontadora? Pouco importa. Poderia me regozijar com essas lembranças, mas não consigo. Sou um louco. Um maluco doidão, como diria o pleonástico Lucas.
Além disso, estou envergonhado das falsas acusações que levantei contra ela. Talvez eu devesse pedir desculpas. Ou talvez eu devesse ir para trás da cômoda roer um pouco o meu móvel. Acho que ali eu teria um pouco de tranqüilidade. Acho que o Raul é mil vezes mais esperto do que eu. Acho que o Humberto é o poeta mais genial dos últimos tempos.
Mas, ultimamente, tenho achado, com bastante freqüência, que eu deveria estar num hospício.

Em meu quarto, um louco treme. Toda a estrutura também. Não temo mais as pessoas ao meu redor. Temo apenas o outro que se esconde em mim. O outro mais ensandecido do que eu, e que parece disposto a tudo para assumir o controle da situação. Sou a flecha e, ao mesmo tempo, sou o alvo.
Raul não apareceu hoje. Talvez esteja assustado com meu comportamento. Melhor assim. Quanto mais longe de mim ele ficar, mais seguro estará. Quanto a mim, o que tenho de fazer para me manter longe de mim mesmo?
Olho sobre a cômoda. Livros e mais livros. Entre eles, um estilete. Ele reluz para mim. Nem tudo o que reluz é mortal – é isso o que diz o ditado? Odeio ditados. O melhor é se precaver. Pego o estilete e abro a última gaveta da cômoda. Desisto. Tem um buraco imenso ali – resultado direto das crises depressivas e protestos veementes do meu camarada. Abro a penúltima gaveta, então. Escondo o estilete debaixo de algumas cuecas furadas. Fecho a gaveta. Afasto-me e encaro a parede. Antigamente fazia isso por achar a parede tão parecida com minha vida. Hoje, não acho mais. Será?
Pra variar, questões invadem minha mente.
Será que ele, o outro Messina, sabe tudo o que sei? Digo, tudo? Será que posso enganá-lo, fazer algo que só minha personalidade menos maluca esteja a par? Sei que ele sabe o que sei, mas não estou certo se sabe realmente tudo. Isso tudo é loucura.
“Somos quem podemos ser”, diria o Gênio. Mas quem eu posso ser, amigo? Que porcaria eu posso ser? Realmente, desconheço a resposta. Talvez por isso não tenho coragem de me encarar num espelho. Não sou indivisível. Não sou autêntico. Não sou sequer a cópia de mim mesmo. Sou a dubiedade dum lastro vacilante. Sou o opróbrio de faces confusas, latentes. E nesse vai-e-vem, me desconcerto em peças pouco observáveis.
É por isso, amigo, que não sou quem posso ser. Se pudesses me ouvir, serias capaz de me entender?
Volto-me para a cômoda, casual.
Mas a eventualidade do momento perde a força quando vejo um objeto repousado, reluzente, sobre o móvel.
É o estilete recolocado cuidadosa e ameaçadoramente sobre a cômoda. Debaixo dele, mais um singelo bilhete:

“NÃO TENTE ME TAPEAR”

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