terça-feira, agosto 8

Eu poderia estar num túmulo – cheguei bem perto disso após a parada cardíaca. Eu deveria estar num hospício – depois de tudo o que passei, me parece bastante justo. Mas, contrário a qualquer uma de minhas incisivas expectativas, estou na página de cultura do jornal de maior circulação no país. Está lá:
“Sérgio Madalena Messina – o visionário da nova poesia brasileira”
Com minha caneta BIC, apago o “Madalena”. Nominho ridículo esse!
As visões de um poeta podem parecer bastante confusas. Quando o poeta é completamente louco – a Insanidade simiiforme –, bem mais. Mas a próxima canção soará bem melhor que a anterior. Um pouco mais de suavidade. Um pouco mais de elevação. Encarregar-me-ei pessoalmente disto.
E a próxima canção há de narrar meus feitos heróicos. Eu encarei meu passado – houve um baque profundo –, mas as cortinas de meus traumas vieram ao chão.
Suavidade. Sublime. E as cortinas dos meus traumas no chão.
Uma infância difícil pode transformar uma personalidade. Pergunte-me. A resposta está nos meus olhos.
Tornei-me um jovem agressivo. Pagar a todos com a mesma moeda ainda me parecia pouco. Quando cresci e me tornei professor de literatura e dono dum pensionato, isso se tornou ainda mais evidente. Eu oprimia os jovens, especialmente os que moravam no pensionato (e que me davam maior trabalho), porque via neles os mesmos zombadores de minha infância conturbada. Eles se vingavam de mim, à maneira deles. Chamavam-me de “dona Madalena” pelas costas. E por causa de minha índole agressiva – e meus cabelos longos –, me apelidaram de Medusa. Lembro-me muito bem de ouvi-los dizer, sem notarem minha presença:
- A Medusa existe. E se chama dona Madalena.
E caíam na risada.
Por volta dessa época, houve um grande confronto no universo. EU SOU versus EU POSSO SER. O que eu estava me tornando? O que havia me tornado? Meu desprezo gerava desprezo. Meu ódio produzia culpa. Envergonhei-me diante do que havia me tornado, contrariando todos os princípios que ouvira em algum lugar e isolara nos cantos mais recônditos de minha memória. Eu deveria lamentar profundamente o que havia me tornado. Eu deveria, e lamentei.
MUDAR. Nada pode ser mais complexo para um poeta louco e agressivo. Mas eu tentei. E eu mudei.
O processo de mudança, porém, gerou estranhos efeitos colaterais. De alguma forma, minha mente bloqueou o ser vil que eu fora e, do qual, nunca mais gostaria de me lembrar.
Mudei-me para o quarto do fundo, por muito tempo abandonado. Reescrevi toda minha história. Tornei-me outro. Um homem sem passado, sem memória... e sem culpa. Apenas flashes de uma infância conturbada. Tornei-me apenas o deprimente professor de literatura que sonhava em ser livre, e conquistar a paz. O que fui no passado se tornou dona Madalena; o que eu ainda gostaria de ser era Lucas. Minha mente confusa dividiu meu passado, meu presente e aquilo que eu almejava ser em três personalidades distintas. E eu acreditei nela.
A partir de então, consegui conquistar a amizade e o respeito dos jovens do pensionato e dos meus alunos, apesar de minha visão pessimista do universo ao meu redor.
A partir de então, dei os primeiros passos para estar na página de cultura do jornal de maior circulação no país.


Colada num canto da parede, a figura de Rimbaud; abaixo, alguns de seus poemas. No outro canto, a figura de Humberto Gessinger e algumas de suas letras geniais. E no centro da parede, colei meus poemas, além de poemas e crônicas dos meus alunos.
O que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger? A resposta é óbvia. Entre eles há um imenso espaço a ser ocupado por mentes geniais, mas que, pela imbecilidade da contracultura, podem acabar sendo soterradas pelo impiedoso anonimato.
O que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger???
EU e VOCÊ!!!


Estou diante do meu computador. Escrevo com bastante freqüência ultimamente.
Raul, o meu cachorro, está deitado ao meu lado. Ele não estava esfomeado quando o encontrei. Isso significa que o alimentei; não me lembro disso, mas obviamente o alimentei em algumas de minhas recaídas meduséias.
Tentei trazer o outro Raul, o rato, para esse quarto, mas não deu certo. O Raul tentou comer o Raul. Por pouco não vi meu camarada sendo massacrado pelos dentes afiados do meu cachorro. Melhor manter os dois separados. Há personalidades que sobrevivem apenas se mantidas a boa distância, como dona Madalena e Lucas. Mas eu ainda levo pão e queijo para meu camarada. Ele saltita e dá gritinhos de alegria quando me vê chegar. Só falta falar. Grande Raul!
Mas eu falava sobre escrever. Enquanto escrevo sou tomado por algumas idéias. Como, por exemplo: e se eu resolvesse escrever a minha história, tudo o que passei, especialmente nos últimos meses? Valendo-me da liberdade de criação, eu exacerbaria alguns eventos, e ocultaria outros. Inventaria um nome fictício. Enfeitaria, dissimularia. Uma ficção verdadeira, uma verdade fictícia. Mas não penso em escrever um livro. Minha história não encheria mais do que trinta páginas. Penso em algo menor. Talvez... um blog. Um conto em um blog, apenas. Eu dividiria a história em diversas postagens. Convidaria algumas pessoas pela internet. E escreveria a história de tal forma que todos pensassem ser fictícia. Não seria tão difícil assim.
Até pensei numa frase – a primeira frase. Seria algo como:
“Se eu soubesse a porcaria em que iria me meter, teria dado um fim nessa história antes que ela começasse a ser escrita”.
Parece-me bastante bom. Parece-me o suficiente. Mas até publicar esse blog, porém, farei segredo de todos esses acontecimentos. Segredo inviolável. Um segredo compartilhado apenas por mim, pelo Raul e pelo Raul.
Para todos os efeitos, a aula está acabada.

F I M

Dedicado a Cristiane Lima que, neste exato instante, está em algum lugar do planeta tentando salvar os golfinhos

3 Comments:

At 11/8/06 12:01, Anonymous Anônimo said...

Bom, muito bom! o Messina é todo mundo! na verdade acabei de pensar... vai ver assumi a personalidade de leitor, li, esperei pelos posts, fui ficando intrigado e interessado, esperando pelo fim dessa história absurda, e agora venho aqui fazer um comentário como leitor... eu sou todo mundo.
vai saber né...
Messina-Lucas-Madalena-Leitor?

ha ha, muito bom, parabéns, ótimo conto.

 
At 12/8/06 14:28, Anonymous Anônimo said...

Boa tarde, adorei o conto...gostaria de lhe sugerir uma leitura "TRAPO" de Cristovam Tezza um escritor curitibano...existe um bom exemplar na biblioteca pública central de maringá!
Um abraço! Ass: Normalindo Junior

 
At 5/8/12 18:37, Anonymous Anônimo said...

O Melhor livro já escrito que eu já vi, e ainda mais por uma mente tão poderosa como a do autor que sempre esteve na memoria de um homem que o conhecia. Que sabe que teve um amigo realmente especial.

 

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