sábado, julho 29

"Rimbaud é inteligente até não poder mais; mas acabará muito mal” - Perrete, o velho e rabugento professor de Arthur.

Contemplo a discórdia. A imprecisão dos movimentos. O reflexo distorcido. Dois homens em um só. Duas mentes, dois objetivos, dois inimigos. Cada louco com seus fantasmas de estimação. Os meus respondem pela minha trêmula sombra.
Não podemos coexistir. Isso é mais do que evidente. Mas também não posso atacá-lo, diretamente. Atracar-me a mim mesmo me rebaixaria ao mesmo nível dele. Preciso agir de uma forma mais conspícua. Apenas a inteligência poderá subjugar este insano. Percepção versus intimidações. Os ingressos já estão à venda. Quem vencerá o grande confronto final?
Eis as recomendações: não posso deixar-me desalentar. Se eu entrar em desespero, ele assume o controle. Preciso de calma. Paz. Preciso convocar todo o equilíbrio ao meu redor. Como encontrar paz a fim de meditar no que fazer para derrotar minha insana e trêmula sombra? A resposta, bastante simples, vem me acarear, um sorriso estampado no rosto: LEMBRE-SE DE RIMBAUD!!!


Um importante concurso. Rimbaud é escolhido para representar o colégio. Poetize, Rimbaud. Poetize. São estas as ordens. Eis a sua grande chance. Mas, contrário ao que se espera, as ordens não o movem. Tampouco a grande chance o faz. Ao invés de escrever, Rimbaud mantém-se estagnado, a cabeça fincada sobre o Nada, viajando no seu mundo particular. Após nada produzir em horas, seu professor lhe cobra uma atitude. O poeta encara-o e arremata:
- Estou com muita fome.
De barriga cheia, Rimbaud escreveria um poema de tamanha sublimidade e primor que arrebataria o primeiro lugar no concurso.

Eis a única forma de me acalmar e pensar no que fazer para derrotar o insano: satisfaça sua fome, Messina. E então poderás ser invencível.
Levanto-me, estufo o peito e clamo:
- Preparem o banquete. O imperador saciará sua fome.
Bastou falar a palavra mágica “banquete”, e o Raul aparece do nada, todo faceiro.


Lucas ouviu toda minha história, mergulhado num estranho silêncio. Depois desatou a rir como um imbecil. Às vezes, acho que o Lucas deriva algum prazer em me apoquentar. Ele tem um certo dom para isso. Mesmo assim, invejo o fulgor juvenil do garoto.
Estamos num restaurante self-service, perto da universidade. O almoço é por minha conta – lá se vai o sobejo do meu salário.
Após recuperar o fôlego, mas ainda rubro, Lucas fala:
- Meu velho, se os caras da faculdade souberem da tua história, te dão a conta na lata.
- Se souberem de minha história, me colocam numa camisa-de-força e me jogam num calabouço, para nunca mais ver a luz do dia.
- Hehe... Pode crer. E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.
Ele recomeça a rir, mas dessa vez não me irrito. E se não me irrito é devido à minha surpresa ante suas palavras. O que ele disse? Como ele...? Como...?
Lucas continua.
- Eu vou te dizer qual é o seu problema, Messina. O seu problema é esse medo que você tem de encarar o seu passado. Vai me dizer que estou errado? Você é um covardão, meu velho. Não tem coragem de assumir o que já fez na vida e, por isso, fica com essas distorções da realidade. Se liga, Messinão. No dia em que você tiver peito, mano, peito mesmo, para assumir a tranqueira que você já foi e as besteiras que já fez nessa sua porcaria de vida, você sai dessa. Pode apostar.
Mal presto atenção no que ele fala. Não consigo me concentrar, não depois do que ele disse. “E jogam aquela ratazana do Raul junto pra te fazer companhia.”
Como permaneço em gélido silêncio, Lucas pega uma caneta e o guardanapo de papel de sobre a mesa.
- Cara, você tá em outra dimensão. Não tá ouvindo uma palavra do que tô falando. Isso dá até medo, sabia? Vou te escrever um troço. Quando resolver voltar para o planeta Terra, vê se dá uma lida nisso e medita pra valer, combinado? Ele escreve e me passa o papel. Vou nessa, maluco. Toma jeito, ou vai acabar na tal camisa-de-força, mesmo.
Ele se vai. Deixa comigo o papel onde está escrito: “E um vagabundo esmola pela rua / Vestindo a mesma roupa que foi sua”.
Mas ignoro a citação de Negro Amor. Minha mente é âmbito acelerado. Minha mente é “inmente”. A silhueta da Desconfiança ocupa o lugar à minha frente – outrora ocupado por Lucas. Como...?
Ao meu redor há confusão, enleio, descrença – tudo vindo à tona depois da frase casual de Lucas. Até meu apetite de imperador esquivou-se do meu ser. Em meu universo particular, remanescem apenas duas frases.
Eu jamais falei sobre o rato do meu quarto com qualquer pessoa.Então, como é que Lucas sabe que tenho um rato, e que ele se chama Raul?

eXTReMe Tracker