terça-feira, agosto 1

Pode ver este homem cambaleante pela rua? Muito prazer, este sou eu! Bela maneira de se iniciar uma tarde em que ainda tenho três aulas! Mas não estou embriagado. Estou apenas confuso... Pior que o álcool.
Caminho sem uma direção definida. As ruas me parecem pouco distintas. Na verdade, acho que estou atrás de Lucas, como se fosse possível encontrá-lo mergulhado nessa multidão de estudantes, nos arredores da universidade. Quem é Lucas?, me pergunto. De onde o conheço? Sei que ele mora no pensionato. Mas eu o conheci ali? Tenho a impressão de que conheço Lucas desde minha infância. Uma tênue, porém, pungente impressão. Então por que não me lembro? O passado figura-se confuso neste momento. Meu universo é intensa caotização. Eis a razão de eu não conseguir deixar de ser quem eu sou. E isso me tortura. E isso me corrói.
Começo a correr. Corro o mais rápido que posso. Cruzo as ruas, ensandecido. Tropeço. Caio. Mas aqui estou eu, de pé novamente. Continue correndo, Messina. Ele está por aí, camuflado no meio da multidão. Ou será a multidão que insiste em se camuflar atrás da figura informal de Lucas? De repente, acho que devo parar. E paro. Nem mais um passo, entendeu? Ofegante. Inspire, expire. Pode ver este louco ofegante na rua? Muito prazer, este sou eu!
Sem mais nem menos, sou invadido por uma certeza: ele está atrás de mim. Eu sei que está. Olhe para trás, Messina, e esclareça de uma vez por todas essa história. Então me volto. E me deparo com ele, Lucas. Para variar, ele ri até não poder mais.
- Tu corre feito um maluco, mano. Achei que não ia te alcançar.
- Quem é você? – Sou bastante direto.
Ele continua rindo. Aos poucos, silencia. Fica sério. Dá de ombros.
- Tá com amnésia, doido? Sou Lucas, seu melhor amigo.
- Você está me escondendo algo. Eu sei que está. Responda de uma vez: quem é você?
- Quem eu sou? Ora, você deveria saber muito bem. Afinal, foi você quem me criou.
Então, como num passe de mágica, minhas lembranças são desenhadas na inóspita prancheta de minha memória.


12 de Junho de 1990.
Um garoto assustado, sozinho, acuado no canto da sala. Ele não tem amigos. Nunca teve. Tem um sério problema em se relacionar com outros. Algo crônico. Os outros garotos não gostam dele. E ele não gosta dos outros garotos. Eles costumam zombar dele: “O Sérgio é doido... Conversa sozinho pelos cantos”. E caem na risada. Zombarias, fantasmas, seus traumas repetidos numa existência descartável.
O garoto acuado tem muitos apelidos, mas apenas um nome: Sérgio Messina.
Quanto ao seu amigo imaginário, com quem conversa todo o tempo, este atende pelo nome de Lucas.


- Como? – pergunto, sobressaltado após o confronto com minhas lembranças.
- Não me pergunte como, mano. A resposta tá aí nessa sua cabecinha.
- Mas você... você não existe.
- Que bom que chegou a essa conclusão! Talvez escape da camisa-de-força. Eu estava começando a ficar preocupado.
- Eu criei você porque... porque...
- Porque você se sentia sozinho.
- É isso. Sozinho, muito sozinho. Eu precisava de amigos. Ao menos, um.
- Mas era pedir demais não era, maluco? Eu sou exatamente tudo aquilo que você sempre quis ser. Um cara extrovertido, despreocupado, confiante. Tá certo que sua mente me mudou com o passar dos tempos. Eu não bebia antigamente, por exemplo.
- Como pude me esquecer disso? Quero dizer, como pude achar que você era real?
- Você foi longe demais na sua imaginação, Messina. Entrou com os chifres nesse seu mundo particular. Quando deu por si, já não sabia mais diferenciar o real do imaginário.
- Você não é real.
- Sinto te informar, mano, mas a essa altura do campeonato, nem você é mais.
- Isso precisa acabar. Isso é loucura. Estou sendo ameaçado por mim mesmo, e tenho um amigo imaginário.
- Isso não vai acabar enquanto você fugir de si mesmo e do seu passado. Mas agora posso perceber que as coisas estão mudando. Esse lance de liderar seus alunos num movimento cultural te deu um novo fôlego.
- Liderar? Mas eu só observo os garotos.
Lucas dá uma risada.
- Como só observa? Não me venha com aquela história de “apenas um observador interessado”. Você não fica um segundo sequer calado nas reuniões do grupo. Lembre-se de que muito do que eu falei nessas reuniões, na verdade, era você quem estava falando.
- Isso é loucura.
- Mas precisa acabar. E a hora é agora.
- E o que eu faço?
- Encare seus medos, Messina. Deixe de ser o moleque covardão, anti-social, que me criou há dezesseis anos atrás.
- E por onde eu começo?
- Pelo maior dos seus traumas... ELA.
- A dona Madalena?
- Não poderia ser outra, não é mesmo?
- Quem é ela, Lucas? Por que eu tenho tanto medo dessa mulher? O que ela fez comigo?
- Isso eu não posso te dizer, meu velho. Você precisa olhar nos olhos dela se quiser se lembrar de tudo.
- Ela fez algo contra mim no passado, mas não consigo me lembrar. Algum trauma está bloqueando minhas lembranças.
- Vença seu medo, covardão. Ela não pode mais te atingir. Você é o Mestre Messina, o líder dum movimento cultural que começa a se espalhar para fora das fronteiras do estado. O que aquela velha rabugenta pode fazer contra você?
- Mas ela pode... ela pode...
- Petrificá-lo? Quem te disse isso? Algum jovem bêbado e sem camisa? Jamais deveria dar ouvidos a essa gente. Eles nunca dizem nada que presta... Vou nessa.
Lucas começa a ir embora. De repente, volta-se:
- Mestre, o que há entre Rimbaud e Humberto Gessinger?
- Eu ainda não descobri. Tenho tentado, mas... eu não sei.
- Você está no caminho certo, mano. Continua nessa que a resposta te encontra. Adeus.
Dizendo isso Lucas se vai para algum canto inacessível do meu cérebro.
Não sei porque ele disse “adeus”. Será que estou, finalmente, agindo como Lucas, sem pensar nas conseqüências e, por isso, não preciso mais dele?
Acho que sim. Não sinto mais a necessidade dele. Isso porque estou confiante. Sei o que devo fazer e vou fazer exatamente assim.
- Dona Madalena, farei com que peça desculpas de joelho pelo que me fez, seja lá o que for.
Se vou sair vivo dessa ou não, eu não sei. A única coisa que sei é que estou para ter o mais importante encontro desde que essa história insana teve início.

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